Meio caminho andado

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Minha mesa ficou com essa configuração por alguns meses

“Se as aulas forem em Marseille, não vou ter motivação pra ir.” Sim, as aulas foram em Marseille. Sim, eu tive motivação pra ir. Praticamente todos os dias de manhã, fizesse chuva, sol, com vento ou com neve – tudo bem, neve é exagero e coisa rara por aqui, mas acontece, mas o frio que fez nesse inverno bem que congelou meus dedinhos várias vezes – lá estava eu, no ponto de ônibus esperando minha confortável condução me levar à cidade mais antiga da França. Lembro que, quando me candidatei ao mestrado e vi que um deles era em Marseille isso me incomodou um pouco, o deslocamento quase diário até lá não era algo que estava necessariamente nos meus planos, mesmo que eu pegue o ônibus praticamente na porta da minha casa.
Foi justamente neste mestrado que fui aceita, ironia do destino, porque era justamente o mestrado que eu não esperava ser aceita já que considerei minha entrevista um fiasco, e ali mesmo comecei a questionar se valeria à pena passar por mais dois anos de faculdade pra, só então, poder exercer a psicologia. Ainda me falta um ano, já me questionei diversas vezes sobre isso, principalmente quando recebi as primeiras notas e com elas, o primeiro tapa na cara.

Estudar mais dois anos pra validar um diploma, será que vale à pena? Se for pra ser psicóloga aqui, é o único caminho que eu poderia percorrer. Já tinha validado meu diploma brasileiro, ou seja, tenho um diploma francês que me concede os créditos necessários pra me increver no mestrado, mas também que autoriza, ao final deste mestrado, à exercer minha profissão. O mestrado puro e simples não me daria esse direito. E o primeiro questionamento veio justamente na época que dei entrada na minha candidatura e tive que encarar um jury de cerca de 10 professores de todos os departamentos de psicologia e explicar todo o meu percurso universitário no Brasil, além de expor minha motivação para estudar e exercer na França. Acho que se fosse hoje, minha resposta inicial seria: preciso trabalhar. Nenhuma motivação é maior que essa. E foi enquanto eu me preparava pra isso que tive minha resposta: vale à pena. Porque não posso jogar toda essa trajetória no lixo. Gaguejando, falando mal o francês, lá estava eu, encarando todos aqueles professores que queriam saber detalhes da minha vida acadêmica e que resolveriam se eu poderia essa trajetória validada. Eles validaram tudo, e eu teria possibilidade de me candidatar no segundo ano do mestrado, coisa que nem tentei, me candidatei direto no primeiro, mesmo podendo ter apresentado candidatura nos dois. Das quatro especialidades, fui entrevistada em duas. O pequeno Narciso dentro de mim já se encolheu pela metade.

Até jogo de palavra aprendi a fazer
Pro mestrado de Aix, fiquei na lista de excedentes. Bom, era alguma coisa, não fui completamente descartada. Pra minha surpresa, fui aceita no mestrado de Marseille, aquele que era “longe”, aquele que fiz uma entrevista que julguei tão horrível que saí de lá chorando (eu choro muito). No primeiro dia de aula, o desespero : eu ainda não tinha estágio, e tudo funcionava diferente. Na verdade, eu já deveria ter um estágio antes do início das aulas, mas não existe um protocolo de orientação para estudantes estrangeiros com relação à determinadas formalidades, e essa foi a primeira que aprendi. Consegui um estágio à 60km de casa, nem podia ficar procurando muito, porque ou seria esse, ou seria repetir o primeiro ano. Repetir, uma palavra que me dá calafrios. Porque, de uma forma ou de outra, estou repetindo. Fiz 5 anos de psicologia no Brasil. Na França, são 5 anos igualmente, só que os 3 primeiros anos são a “licence”, equivalente à nossa gradução, e os dois anos finais já são o “master”, o mestrado que, no caso da Aix-Marseille Université, onde estudo, já dá acesso ao doutorado. Estou repetindo e ao mesmo tempo não estou. 
De repente, as primeiras provas. A nota máxima é 20. A média é 10 mesmo. E as matérias se compensam entre si. Uma loucura. Porque tem que calcular uma média muito doida. Sou psicóloga, não matemática ou engenheira. Assim, um 16 pode virar um 0,8 na equação pra calcular uma média, enquanto um 12,5 vira um 3,55. Louco, muito louco assim. E nessa loucura o primeiro semestre foi validado. 9 provas depois, a média foi obtida. Um alívio. Que durou cinco minutos, porque o segundo semestre veio devastando, com relatório de estágio e monografia, ou mémoire, pra redigir. Ah, o adominável mémoire. Ele me fez sonhar com Metallica que falava francês comigo, enquanto eu respondia em inglês. Me fez ter péssimas noites de sono, me levantar no meio da madrugada pra escrever porque a ideia brotou. Me fez questionar de novo se valia à pena todo esse perrengue. Mas também aumentou meu vocabulário de francês. Eu não fiquei só cansada, fiquei fatiguée, épuisée. Essas palavras eu já conhecia, mas elas sairam do dicionário e entraram pro repertório de experiências vividas. Revisando meu texto, achei erros épouvantables, ou melhor, terríveis. Não foi só o vocabulário que aumentou, mas todas as emoções que as palavras comportam. Eu comecei a sentir em francês, a sentir o idioma francês, a tal ponto que determinadas experiências têm mais peso sendo contadas nesse idioma e não no português. Não estou me desfazendo do meu idioma, mas o drama não foi vivido nele, é questão de emoção colada à tudo que se passou num determinado registro linguístico.

Não teve o título mais criativo do mundo, mas é meu filho

E muitas noites mal dormidas depois, muitas lágrimas depois, muito desespero e leituras depois, ele estava pronto, duas cópias cuidadosamente encadernadas sobre minha mesa. Só faltava enfrentar a defesa, encarar os professores e explicar o trabalho, e soutenir minhas ideias. Soutenir à uma boa palavra, porque ao mesmo tempo que significa defender uma tese, significa oferecer apoio, físico ou moral, à alguém. E apoio não me faltou. Dos amigos, que me pediam pra explicar minha pesquisa e fazia cara de interrogação enquanto eu discorria longamente sobre o assunto, sendo a única psicóloga do grupo. Das colegas de sala que viraram amigas e que sempre pediam notícias enquanto elas mesmas redigiam seus próprios trabalhos.  “Agora é muito tarde pra você desistir”, me disse meu supervisor de estágio, depois de ler e me puxar a orelha por não ter deixado ele ler antes que eu entregasse pra revisar os erros de francês. Família do outro lado do oceano tentando me apoiar. E Bernardo, que me deu o apoio mais importante de todos, que foi a calma no meio do meu desespero e stress, que mesmo sem entender leu o que eu escrevi e me fez perguntas, e o mais importante de tudo, acreditou em mim e não me deixou desistir.

La soutenance. Apresentar o meu trabalho pra dois professores. Foi o que tentei fazer, gaguejando, em pânico, procurando minhas palavras, que de repente resolveram se esconder. Todas, não importa em qual idioma. Tive cinco minutos pra expor minhas ideias, e depois era a vez dos professores, e eu esperava o pior. Foi a meia hora mais longa da minha vida. Parecia que eu encarei os professores por um dia inteiro. E no final, quando recebi minha nota, minha sensação foi de alívio, de soulagement completo. Não só a nota, como um elogio que não esperava, e um encorajamento pra continuar a pesquisa no próximo ano (porque podemos escolher um tema “abacaxi” pro primeiro ano e um tema “abóbora” pro segundo). A panique deu lugar ao soulagement. E eu fui réconfortée pelos colegas que assistiram meus minutos de angústia, l’angoisse, de sensação de bola no estômago, la boule au ventre. As palavras em francês tiveram mais peso nesse momento, porque tudo isso foi vivido em francês. Eu quase chorei em francês. Choro muito, isso é fato, mas neste dia eu contive minhas lágrimas. Mas eu consegui, j’ai réussi. Ano que vem tem mais.

Sobre a validação e dispensa de diplomas, leia: Mestrado em psicologia na França

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