Estaca zero: começando a vida em outro país

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Bonjour… Je voudrais (…) des pelotes (…) de ligne blanche. 

Foi essa a primeira frase que consegui articular em francês, ainda na minha primeira semana por aqui, quando fui à uma loja no centro comprar linha de crochê pra fazer meu vestido de noiva. Literalmente, “bom dia, queria novelos de linha branca”. Aos trancos e barrancos, consegui tecer esse diálogo gaguejado, e sai da loja me sentindo uma vitoriosa, segurando minha sacolinha com os novelos de linha com o mesmo orgulho que quem segura um troféu conquistado após árdua disputa, no melhor estilo Davi segurando a cabeça de Golias. Pode parecer exagero, mas garanto que muitos expatriados que atravessaram o complicado processo de aprendizagem de uma língua estrangeira in loco irão concordar comigo. Mas minha batalha com o idioma francês estava apenas no início, e gaguejaria inúmeras vezes, durante as situações as mais variadas possíveis, chegando até à ficar com as bochechas coradas, transpirar, ter taquicardia…

Ano passado, durante minha pesquisa pra monografia do primeiro ano do mestrado, cujo tema foi língua estrangeira e língua materna, acabei descobrindo a pluma de Nancy Huston, uma escritora canadense de marido búlgaro e residente em Paris desde a década de 1970, que relata no belo livro “Nord Perdu” (Norte Perdido) suas dificuldades e constragimentos ao longo do seu processo de aprendizado do idioma francês. Seria completamente redundante dizer que me solidarizei do início ao fim do seu recito, chegando inclusive a me identificar com algumas passagens. O embaraço causado quando, por um deslize de pronúncia, acabamos soltando uma palavra que não era a inicialmente desejada, ou quando demoramos um pouco mais para exprimir uma ideia, ou quando situações de estresse nos fazem perder palavras.
Aprender um novo idioma por razões de sobrevivência não se restinge ao simples aprendizado de vocábulos, conjugações e conjunções, mas implica também uma apropriação emocional das idéias que se tem intenção de expressar, o que muitas vezes pode ser demorado, se considerarmos que muitas das palavras aprendidas vem dos dicionários, que não transmitem nenhum sentimento/emoção associados. Além disso, determinadas vivências emocionais aconteceram lá atrás, na infância, e possivelmente não serão revividas num idioma estrangeiro. O aprendizado de palavrões, por exemplo: é uma das nossas primeiras transgressões, sabemos que são palavras proibidas mas é justamente essa proibição que nos instiga ao aprendizado. Não é à toa que, quando começamos o aprendizado de um idioma estrangeiro, muitas vezes queremos aprender logo os “palavrões”: mas eles não vem com o mesmo peso de transgressão de normas sociais se usamos o dicionário como fonte, livrinho que não nos censura, mas se a mesma palavra nos é transmitida durante uma dada situação, a carga afetiva à ela atribuída é percebida, e os efeitos que ela produz nos interlocutores completa o trabalho de atribuir peso a um xingamento específico.

Muito complicado? Quando passamos por uma situação de aborrecimento fora do nosso país, mesmo tendo um bom conhecimento do idioma local, o palavrão que vem primeiro é no idioma que conseguimos expressar melhor nossas emoções, e que geralmente é o idioma materno. Enfim, tudo isso pra dizer que um palavrão dito em idioma estrangeiro pode ser cheio ou vazio dependendo da sua relação à palavra escolhida.

E atribuir afeto às palavras é um esforço que vai muito além do significado denotativo, e requer um certo tempo, e nos traz de volta à estaca zero. O primeiro sentimento que emerge é frustração, por não conseguir se exprimir com a mesma desenvoltura que no idioma de origem. E decepção, e resignação. Com o passar do tempo, e à medida que o vocabulário aumenta, e aos poucos os afetos são atrelados às palavras usadas no dia a dia, a comunicação fica cada vez mais natural e flui com facilidade, mas ainda assim a comunicação encontrará limites em determinados pontos. Situações de entrevistas, por exemplo, que são estressantes, tem o nível de desconforto multiplicado quando acontece em idioma estrangeiro. Imagine ter de explicar em um determinado espaço de tempo, geralmente curto, sua trajetória acadêmica e profissional, e seu projeto profissional futuro, ou então apresentar um trabalho de pesquisa em cinco minutos, ou propor sua candidatura ao estágio, tendo que explicar todas as anteriores. Se tudo isso tivesse acontecido no Brasil, o nervosismo seria o mesmo, mas seria poupada da gagueira ou da falta de palavras.

De repente, somos confrontados à situações que demandam cada vez mais que nos expressemos, e  depois de tanto atravessar essas situações, o idioma estrangeiro já não é mais tão estrangeiro assim, as gagueiras e brancos se tornam menos frequentes e o discurso fica mais fluido. Aí, é possível conduzir uma entrevista sem gaguejar, e esse momento vira um marco na vida de um expatriado. E isso significa muito, em qualquer situação que seja, significa que a estaca zero ficou lá atrás, e virou um ponto de referência sobre o qual nos apoiamos para, de vez em quando, avaliar o caminho percorrido e os marcos alcançados, o que pode muito nos surpreender. E quando a profissão escolhida tem como principal instrumento de trabalho a palavra, fica um pouco difícil se dar ao luxo de perdê-las. 

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